A ilha - Ricardo Kelmer
A ILHA
Era uma ilha que vivia no meio do oceano. Levava uma vida tranquila, sem
grandes questionamentos. Conhecia outras ilhas e com elas se comunicava. Um
dia, porém, uma ideia a inquietou: se toda vez que a maré baixava, uma porção
de terra se descobria, então até que ponto haveria terra? Até que ponto a ilha
existia?
Isso lhe tirou o sono por várias noites. De repente
seu conceito sobre si mesma começou a mudar. Sempre se considerara uma porção
de terra boiando à superfície da água, todas as outras ilhas também pensavam
assim. Mas agora já não podia acreditar nisso. Uma ilha não terminava logo
abaixo da linha das ondas. Claro que não. Continuava para baixo. Talvez uma
ilha na verdade fosse uma… montanha! Sim, uma montanha com o pico fora dágua.
Saber que ela continuava além daquilo que sempre
julgou ser era algo espantoso de se pensar. Assim, dia após dia, a ilha
prosseguiu em seus esforços de autoinvestigação – precisava saber até onde
existia. Mas à medida que sua atenção mergulhava em si mesma, as águas ficavam
mais escuras, e era preciso cada vez mais concentração para não se perder. Ela
prosseguiu, mais atenta, e descobriu que aquilo que existia sob a superfície
continuava sendo ela mesma, sim, mas parecia ter vida própria.
Cada vez mais surpresa, a ilha constatou que aquela
parte mais profunda de si mesma levava uma existência semi-independente, porém
interagindo com a superfície, influenciando e sendo influenciada por ela. A
ilha então soube a razão porque se comportava dessa ou daquela maneira, e muitas
coisas ficaram mais claras a respeito de si mesma, de seus relacionamentos com
outras ilhas e da vida de modo geral. E a cada descoberta que fazia, outras
mais se anunciavam, e de repente era como se o Universo se expandisse para
dentro dela mesma!
Muito tempo passou até que se convencesse,
verdadeiramente, de que ela era mesmo uma montanha com o pico emerso. Estava
presa a uma base, uma enorme extensão de terra que funcionava como chão. Vinham
de lá todas as ilhas. E para lá voltariam todas quando os movimentos da terra,
dos ventos e das águas as forçassem a isso. Mas a grande maioria das ilhas não
sabia que todas elas continuavam para baixo, e por isso não entendiam as reais
motivações de muito do que faziam. A parte acima da superfície era tudo que sabiam
sobre si mesmas, e isso era pouco. A parte submersa, a montanha, era a parte
inconsciente de cada ilha, aquilo que desconheciam de si mesmas. E o fundo do
mar era o inconsciente maior, único, de todas elas, o lugar de onde vinham.
Ao entender esse fato, a ilha lembrou do tempo que
sua consciência de si própria se limitava àquela minúscula porção de terra à
superfície. Todas as ilhas vêm do mesmo lugar – ela repetiu, intrigada com suas
descobertas – porque são feitas da mesma terra… A areia e os nutrientes que as
raízes de suas plantas colhem, vem tudo do mesmo chão… Todas as ilhas que
existem são no fundo uma coisa só, que se experimenta em várias extensões de si
própria… e cada extensão possui consciência de si, mas esta consciência é
limitada pois quase nunca desce em direção ao fundo, acomodando-se na parte
mais superficial… Se cada ilha se aprofundasse em sua noção de si própria,
acabaria se conhecendo melhor e, por virem todas do mesmo lugar, conheceria
melhor a todas as outras ilhas.
A ilha viu que eram ideias grandes demais, confundiam
a mente. Aquela autoinvestigação era importante, mas requeria muita atenção
para não se perder durante o processo. Só assim poderia transitar com êxito
entre as duas camadas de realidade, a que ficava à superfície e aquela mais
escura e misteriosa que prosseguia rumo a seu próprio interior.
Enquanto tudo isso acontecia, as outras ilhas
observavam seu comportamento e não entendiam o que ela tentava lhes dizer. A
ilha sentiu-se só. Viu-se então pensando do ponto de vista da terra: se elas
não se conhecem e elas todas são parte de mim, então eu ainda não me conheço
tão bem… Assim sendo, como poderia condená-las? Não, não poderia. Deveria
entender e aceitar o ritmo natural de cada uma das ilhas. Deveria agir com a
mãe sábia e bondosa que incentiva todos os seus filhos, mas tem de respeitar o
caminho individual de cada um deles…
Foi então que, subitamente, a ilha percebeu, num
intenso clarão de compreensão, que toda aquela vasta extensão de terra lá
embaixo funcionava como um útero a expulsar pedaços de si mesma, forçando-os à
superfície. Uma vez lá, eles se entendiam ilhas e começavam sua aventura
individual em busca de saber quem de fato eram, de onde vieram e por que
existiam. Mas por que a terra fazia isso? Talvez para ela própria aprender com
a experiência individual de cada ilha. Ao morrer, uma ilha levava à terra sua
própria experiência que serviria para formar as futuras ilhas. Assim, toda ilha
continha em si, sem se dar conta, a mesmíssima areia das que a antecederam.
Através da vida de cada uma das ilhas, a terra como um todo estava aprendendo
cada vez mais sobre si mesma…
Se isso era verdade, então cada ilha possuía uma
enorme responsabilidade: conhecer-se a fundo, viver a vida da melhor forma
possível e aprender o máximo que pudesse, pois tudo o que vivesse formaria o
material do qual seriam feitas as ilhas que a sucederiam.
A vida é mesmo uma tremenda aventura! – pensou a ilha
enquanto se divertia com os olhares estranhos que as outras lhe lançavam. Uma
aventura de cada ilha. Mas também da terra inteira.
.
Ricardo Kelmer - 1997
Comentários
Postar um comentário